terça-feira, 30 de novembro de 2010

O CRAVO NÃO BRIGOU COM A ROSA?

Recebi de minha querida Jô Francetto, educadora, um texto interessante sobre a onda do politicamente correto na educação infantil, que vê necessidade até de modificar as letras das canções para que a "violência" não atinja as crianças.
Também fui educadora (ainda sou, nunca se deixa de ser) e acho que essa "agressão" observada por adultos frustrados nas letras das músicas infantis e que - pasmem os beatos! - está intrínseca em clássicas histórias, como Cinderela, Chapeuzinho Vermelho etc (Bruno Bettelheim trata com propriedade no livro "A Psicanálise dos Contos de Fadas"), são importantes para liberar na criança sua necessidade de revoltar-se, de frustrar-se com o mundo, a gama de sentimentos que ela aprende serem socialmente condenáveis, mas que também são precisos à formação de sua personalidade.
Acho um absurdo não permitir que os pequenos expressem verbalmente que atiraram o pau no gato ou que o cravo brigou com a rosa. Há quanto tempo essas canções fazem parte do popular da infância e jamais soube-se de registro de violência por conta de qualquer motivação vinda das cantorias?
Bando de gente bitolada, porque na grande maioria e não só nas periferias, as crianças observam os pais brigando, os vizinhos brigando, as brigas de trânsito... até mesmo as próprias professoras perdem a paciência e dão seus gritos de vez em quando!
Se transferirmos isso pro Jornalismo, existe até mesmo uma sequência considerada adequada de apresentação de imagens sobre violência na TV, quase sempre seguidas de imagens apaziguadoras. Embora lamente, se indigne e até sofra por vezes com o que está observando, o telespectador está protegido pela TV, não será atingido naquele momento. Por isso, olha, assiste, critica, reflete, desliga e vai seguir com a vida. 
Na criança, esse é o mesmo efeito causado com a briga do cravo com a rosa e pela paulada dada no gato.
Segue o texto de Luiz Antonio Simas, mestre em História Social pela Federal do Rio de Janeiro.

O CRAVO NÃO BRIGOU COM A ROSA


Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto. Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais O cravo brigou com a rosa. A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo - o homem - e a rosa - a mulher - estimula a violência entre os casais. Na nova letra "o cravo encontrou a rosa/ debaixo de uma sacada/o cravo ficou feliz /e a rosa ficou encantada".

Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha. Será que esses doidos sabem que O cravo brigou com a rosa faz parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore brasileiro?
É Villa Lobos!
Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê. Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas. A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê. A tia do maternal agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/ Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar.
Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca. Os amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos e Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.
Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem entra na roda dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil. Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.
Dia desses alguém [não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não procurei a referência no meu babalorixá virtual, Pai Google da Aruanda] foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos setenta, coisa de viado. Qual é o problema da frase? Ecologia, de fato, era vista como coisa de viado. Eu imagino se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse, em mil novecentos e setenta e poucos, que algum filho estava militando na causa da preservação do mico leão dourado, em defesa das bromélias ou coisa que o valha. Bicha louca, diria o velho.
Vivemos tempos de não me toques que eu magôo. Quer dizer que ninguém mais pode usar a expressão coisa de viado ? Que me desculpem os paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma tremenda babaquice. O politicamente correto é a sepultura do bom humor, da criatividade, da boa sacanagem. A expressão coisa de viado não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa a bicha alguma.
Daqui a pouco só chamaremos o anão - o popular pintor de roda-pé ou leão de chácara de baile infantil - de deficiente vertical . O crioulo - vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) - só pode ser chamado de afrodescendente. O branquelo - o famoso branco azedo ou Omo total - é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação mais evidente. A mulher feia - aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno - é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade. O gordo - outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, Orca, baleia assassina e bujão - é o cidadão que está fora do peso ideal. O magricela não pode ser chamado de morto de fome, pau de virar tripa e Olívia Palito. O careca não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.
Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais... Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.
O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e 2014, disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao invés de mandar o juiz pra p...queopariu e o centroavante pereba tomar no olho daquele lugar, cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de Jesus, alegria dos homens, do velho Bach.
Falei em velho Bach e me lembrei de outra. A velhice não existe mais. O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé na cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro funeral, o popular tá mais pra lá do que pra cá, já tem motivos para sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a "melhor idade".
Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não... Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do Pé Junto.

3 comentários:

Unknown disse...

Lendo o texto a única conclusão que chego é a de que queremos tapar o sol com a peneira... soluções hipócritas... o preconceito está aí, a violência está aí no nosso dia-a-dia,para todo mundo ver e sentir, e não são livros e canções inocentes que incitam as incitam, somos nós, a nossa sociedade.

Erich Vallim Vicente disse...

Dani, estamos cercados pelo politicamente correto. Seja por dinheiro, por estatus ou mesmo por pura ignorância, as pessoas têm se tornado politicamente corretas. Mas não há nada neste universo, algo que seja criativo, deixe o óbvio e ensine com a complexidade da palavra usada de maneira vulgar, mas de forma ampla. Penso em Millôr, em Henfil, em Hunther Thompson, em Vladimir Nabokov, em Raul Seixas, em Lima Barreto, em Norman Mailler, em James Joyce, em tanta gente que soube ir além desta praga que é a pieguice. Crianças, atirem o pau nos moralistas!

Daniele Ricci disse...

Uhullllllllllll.... Erich!!! Logo vão transformar a Cuca numa lagartixinha que faz sopa e o Saci num portador de deficiência física... é só fantasia, gente, necessária pra aguçar criatividade nas mentes! Obrigada...