quinta-feira, 17 de abril de 2014

Sem anos de solidão

Recebi a notícia da despedida de Gabriel García-Márquez pelo lamento de meu amigo e colega de trabalho Rubinho Vitti e a informação ecoou pela bancada de jornalistas num profundo "ahhhhhhhhhhhh...", seguido de um silêncio taciturno. Como não lamentar a perda dessa grande mente inteligente e criativa em tempos de pobreza espiritual e intelectual, colérica? A leitura de Gabo nos remete ao encontro de personagens tão ricamente criados, que embora Cem Anos de Solidão seja uma das maiores obras-primas da literatura, impossível sentir-se sozinho ao acompanhar seus enredos. Eu não poderia escrever melhor sobre um dos maiores escritores da atualidade - e de todos os tempos -, como fez meu querido Felipe Rodrigues, jovem intelectual, pessoa divertida - qualidade dos inteligentes e criativos - que me dá a honra de chamá-lo de amigo e de quem sou uma torcida constante. Por isso, compartilho seu artigo, impresso de sua personalidade.
 
Trinta e um anos de solidão
Felipe Rodrigues
  
A primeira vez que eu li a frase “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”, que dá início ao livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García-Marquez, fiquei em estado de choque. Um único parágrafo foi suficiente para eu perceber que estava diante de uma obra-prima. As páginas se passaram e eu fiquei fascinado pela possibilidade de viajar por um universo mágico de coronéis, ciganos, borboletas, assassinatos, peixinhos de ouro e homens amarrados em árvore. Sem falar de Úrsula, ah, Úrsula...
Terminei o livro em dois dias, espantado com a qualidade daquela história. As páginas pareciam voar em minhas mãos, tamanha a velocidade com que eu as lia. Acabei a leitura um tanto quanto chateado. Aquela experiência tão gostosa se encerrara. Impossível explicar o que mais me agradava. A narrativa despertava certa nostalgia das histórias antigas de assombrações contadas pela minha mãe, quando eu e meu amigo de infância Thiago, além do meu irmão Del, ficávamos com um misto de medo e encanto.
Ouvíamos no quarto escuro de casa alguns causos de homens que sumiam sem explicação, mulheres que carregavam bebês maiores que ela, porteiras que se mexiam sozinhas, mães que morriam porque o chinelo estava de ponta cabeça, maldições de quem quebrava espelhos, entre outras invencionices que minha mãe repetia e fazia eu arrepiar-me todo. Causos esses que foram, de certa forma, reinventados por Gabo, nas mais diferentes passagens do seu livro sobre Macondo.
Macondo, por sinal, que servia como um microcosmo das tantas cidades do interior pela qual nós passamos, com suas praças, seus figurões, padres, delegados, além das plantações de banana, cana, café ou soja. Aquela cidade, seus habitantes, os Buendía, Arcádio, Melquíades, Remédios, Amaranta, entre outros, tornaram-se espécie de amigos, aos quais eu poderia redescobrir toda vez que eu lesse a história.
Fato é que nunca mais consegui ler um livro sem compará-lo a Cem Anos de Solidão. E desde então, a única obra que pareceu-me superior foi Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Eu sei que Dostoievski é mais importante (assim como vários russos), Shakespeare é Shakespeare, Joyce é infinitamente mais complexo, Proust tem uma obra mais pesada e Vargas Llosa talvez escreva melhor, mas a literatura de Gabriel García-Marquez fala de um jeito especial em mim.
No momento em que tento, de forma torta, seguir seus passos, ele morre. Poderia eu aqui dizer que talvez ele esteja com vergonha agora, ao ver que sua obra inspirou pessoas sem capacidade para o ofício, como eu. Mas não sei. Escrever é o que me resta, já disse brincando, mas é verdade. Cada vez mais isolado, meus amigos mais próximos acabam sendo os livros, eu sei que a culpa disso é exclusivamente minha. Já são trinta e um anos de solidão, e a partir de agora, serão outros tantos, sem a inspiração de Gabo por aqui.

É isso. Bom, né?

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