sábado, 25 de outubro de 2014

Um lar de boas histórias e lembranças





Eu sou feliz. Mas sou intensa. Por isso, não sei sentir pouco, tudo o que faço é  com pensamento grande. Meu irmão, que bem me conhece, me vendo triste um dia por causa dessa minha intensidade, comentou uma frase que nunca mais esqueci: "Numa alma grande, tudo é grande."
Achei simpático. Um elogio e tanto. E como eu sabia que era verdadeiro, fiquei feliz na hora. 
Sou simples, me agradar exige muito pouco.
Acho que aprendi isso com o meu avô. Ele tinha um passarinho preto e todos os dias, quando eu ia a casa dele, eu passava a mão na crista do passarinho e ele adormecia de cair do poleiro. 
Meu avô, que foi a melhor alma que Deus me deu a oportunidade de conhecer na vida, o tirava da gaiola e dizia que não gostava dele lá, mas que já estava há tanto tempo que essa tinha virado a natureza dele. Ele o colocava na minha mão de menina, pequenininha, e a gente ficava conversando um tempão, sentados no chão do enorme quintal  daquela casa.
Enquanto eu o acariciasse, o passarinho continuaria dormindo. Ele trocava a chance da liberdade pelo carinho. Como muita gente faz. Acho que não enxergava o horizonte além da proximidade da gaiola. 
Mas realmente o ambiente ali era muito bom. A casa dos meus avós não tinha piso, era chão de tijolos socados e terra, embora fosse casa de material. No frio, era muito fria. Mas era um ambiente rústico convidativo. Ninguém se importava de sujar os pés de terra, porque o privilégio era ter abrigo. 
Para evitar a poeira, minha vó jogava água. Ficava um cheirinho de tijolo e terra que demorava a secar. E esse cheirinho, às 5 da manhã, se juntava à fumaça do café de coador de pano, quentinho, doce e ao sabor de moda de viola. O sol já ia entrando pelos fundos da casa, iluminando a cozinha e dando bom dia.
O colo do meu avô era o primeiro que eu procurava pra tomar café, limpar as gaiolas, trocar a água dos passarinhos, daquele canário-da-terra que era o xodó.
Eu brincava na oficina de consertos eletrônicos do meu tio e adorava quando ele fundia os fios, coisa que deve ter um nome, mas não me lembro. Achava lindas as faíscas, eram como estrelas que a gente podia ver bem de perto, embora não fosse recomendável.
Senti saudades quando ele foi pro Exército, mas adorava suas voltas porque sempre me trazia uma boneca porcaria, dessas de plástico, sem qualquer articulação. A preferida tinha cabelos compridos e negros feito uma índia, com roupas azuis.
Em frente à casa havia um banco feito com um tronco de uma árvore cortada há muitos anos. Como era arredondado e grosso, balançava. Ali virava ponto de encontro para as conversas com os vizinhos nas noites quentes. Enquanto isso, a criançada aprendia a andar de bicicleta até a outra esquina. 
A casa do meu avô ficava numa esquina da Osório de Souza com a Fernando Febeliano da Costa, ali na Vila Independência. Era uma das primeiras casas do bairro. Segundo minha mãe, ela era menina e tinha aquela e mais umas cinco, eram ruas de terra. Um único vizinho - guardada a proporção da distância da vizinhança, de quilômetros -, um japonês, era o feliz proprietário de um telefone. Luxo à época. Emergências e urgências, nesses casos, era para a casa dele que viajavam os vizinhos para poder usar o aparelho. 
Anos depois, já na década de 70, meu avô também tinha um aparelho. E me lembro, dotada de minha criatividade infantil, de pensar: "será que um dia os telefones não serão de discar e nem tão pesados assim?" Errar um número era triste, porque exigia nova discagem, machucar meus dedinhos naquele disco pesadão. E olha que hoje podemos até conversar com o aparelho que ele disca sozinho!!! Da hora a vida!!
Mas naquele tempo, nem se podia imaginar uma coisa dessas. Naquelas noites quentes em que a gente se juntava em frente à casa, lá por volta das oito da noite, chegava o seu Milton, um senhor bonitão, simpático e sempre aprumado, às vezes só, às vezes com a esposa. Guardava o Gordini - que depois virou Fusca - na garagem ao lado, fechada com um frágil portão de madeira. 
Eu brincava com a meia dúzia de irmãos pretinhos que moravam na vilinha mais adiante e com o neto da dona Alcinda. Aprendi a andar de bicicleta ali, naquela rua. Me sentia a mulher-maravilha e às vezes minha avó me improvisava uma capa. Lá, naquele cenário, eu tirei fotos em cima de cavalinhos, vi passar o palhaço na perna-de-pau divulgando a chegada do circo, fui à feira comer doce de leite de colher com minha avó, vi meu vô colocar piso cerâmico na casa toda, meus tios casarem, a casa ficar grande, as coisas mudarem e chorei quando ela foi vendida e demos adeus à oportunidade de novas histórias naquele lugar tão especial.
Às vezes passo por ali, mas o lugar já não é mais o mesmo. Não foram as reformas, mas é que qualquer casa só se torna lar pela presença do amor entre os que vivem nela. Meu avô já se despediu de nós, vovó partiu esta semana, meus tios tomaram outro rumo, a vizinhança mudou.
Hoje tenho meu próprio lar e nele escrevemos, eu e minha Maria, nossas boas histórias. É nosso abrigo, nosso templo, nosso cantinho, nosso ninho. É nosso, porque nele estamos. Tento, dentro das possibilidades que a vida moderna nos oferece e do espaço que temos nesse nosso lugar de viver, que seja um abrigo de boas lembranças que no futuro nos impregnem dessa sensação de paz que sinto agora ao rememorar essa fase da minha infância. Dá vontade e fecho os olhos para ir caminhando por entre aqueles sorrisos.
Parafraseando o Roberto, das lembranças que eu trago na vida, essa é uma das saudades que eu gosto de ter. Assim, sinto todos bem perto de mim outra vez.